domingo, 19 de setembro de 2021

 Bem sei que o tempo foge e foge cansado.

De pernas doridas, mãos calejadas, dedos cortados e uma espécie de puberdade facial, desejo sempre que tudo fuja ainda mais rápido do que eu.

Assim me sinto na cozinha, um espaço agradável para quem vem de fora e fica fora, que vem para comer e se divertir, rir muito de copo na mão e garfadas entre palavras tolas. A falta de noção alienada de quem critica gratuitamente o pão que o diabo amassou, sim muitas vezes trata-se de um Inferno, ao contrário do de Dante, este é feio, é um stress, uma submissão completa a quem o reina, uma aflição tenebrosa em busca da perfeição, um ringue de batalha de egos, um desespero, um estomago quase sempre vazio e com falta de tempo para urinar e sequer cagar, uma dedicação brutal para que nada falte. E se a nossa vida fosse feita de mise-en-place? Se tivéssemos que ter tudo, sempre, preparado para nada falhar. Seria uma merda, porque o imprevisto é bom, sabe bem. Quando escrevi ringue de batalha pensei nos combates sérios, não como aquele filme italiano do Benigni, La vita è bella na cena do ristorante, não como o Estômago, filme brasileiro, entre tantos outros que podia estar a nomear mas sim como a competição por um boneco branco insuflado que está ligado a pneus, uma luta de egos, uma luta tão grande que se esquecem do que é uma cozinha. Nunca ambicionei ser nada, muito menos cozinheira mas aconteceu e ainda bem porque adoro comer, adoro cozinhar, adoro as cores que tenho em mãos, adoro facas e manuseá-las, adoro o cheiro de tudo, adoro os tachos, ver coisas a ferver, adoro o vapor, adoro o chão escorregadio, adoro as tábuas e mais cores, adoro a organização e os containers de inox, adoro as canetas penduradas no avental, adoro saltear magia, adoro os bicos do fogão, adoro jalecas lavadas, adoro a posição vocal das pessoas, a comunicação bruta, adoro a adrenalina, adoro cada prato que sai, adoro a receita que falhou e que se volta a fazer ou corrigir, adoro a cozinha. Infelizmente não é disto que se trata, desta sensibilidade e amor ao avental, é de uma guerra, uma escravatura moderna, passa-se 9 a 14 horas numa cozinha porque já passou a ser normal, é o tem que ser e cada um aceita isso como ser-se cozinheiro, aceitam a submissão ao chefe, aceitam que sejam maltratados, aceitam chorar na casa de banho depois de muitos serviços, aceitam isto e não só, ordenados baixos, problemas de saúde, cansaço extremo, desejo por beber e drogar até cair, em prol de nomes Michelanizados e não só. Isto é uma guerra a sério, digo-vos.

Acordar com as pernas a latejar quer dizer o quê? Dormir mal sob inseguranças do próximo dia, no próximo serviço, é o quê? Repartir o dia constantemente para encher o cu a patrões exploradores (porque é bonito ter um restaurante, para dizer aos amigos) é o quê? Ordenados tão miseráveis com gorjetas para debaixo do tapete (como incentivo) é o quê? 

Fodam-se todos, a mim já não me fodem mais.


P-S. Lembrem-se que quando forem comer a qualquer restaurante, existe sempre alguém lá dentro que se sente uma merda, o teu prazer é a dor de outro e por isso respeitem a comida que têm no prato, ou então irei cuspir-vos nos túmulos.

 

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